sexta-feira, 3 de julho de 2009

QUEM TEM MEDO DE FEITIÇO?



Toda cultura engendra eventos, gestos, fenômenos e hábitos considerados estranhos pelas demais. Assim, o colonizador português nunca pôde compreender porque, entre os índios brasileiros, a mulher ia trabalhar enquanto o homem ficava na oca, cuidando do recém-nascido. Da mesma forma, o branco não pôde compreender porque os negros escravos ofereciam alimentos às suas divindades. Já estava muito longe a lembrança de que os antigos judeus ofereciam bois, carneiros, pombas, rolas, pães e azeite a seu deus. De igual sorte, a cultura católica, até hoje, conserva o hábito de oferecer pão e vinho à sua divindade maior, acreditando que tais substâncias se tornam corpo e sangue do Filho Único de Deus. E tudo isso acontece com um simples balbuciar de uma frase por parte do sacerdote. Ocorre, no entanto, que muitos católicos advogam para si a exclusividade de tal capacidade. E qualquer outra cultura em que se acredite também na possibilidade de realizações semelhantes é tida na condição de arte do Demônio e seus sacerdotes considerados feiticeiros. Ou na melhor das hipóteses: atos de selvageria, coisas de ignorantes, gente atrasada.Supersticioso até a alma, o português colonizador trouxe consigo o pavor deixado pelas fogueiras da Santa Inquisição, para quem até não trocar o óleo da candeia na sexta-feira era indício de satanismo. Mulheres foram queimadas vivas por exercerem o ofício de feiticeira: viravam rato, morcego, transformavam pessoas em bichos, voavam montadas em vassoura, tinham intimidades sexuais com o Demônio, enfim, faziam feitiço.Ao ver as práticas tidas como exóticas, tão comuns ao povo negro, nada mais óbvio para os preconceituosos do que considerar tais hábitos como esquisitos, estranhos e até mesmo demoníacos, satânicos. Enfim, malefícios de feiticeiro, isto é, feitiço. Afinal, as pessoas preconceituosas consideram-se exclusividade no plano do Criador. E a cultura de origem negra, ainda hoje, sofre as conseqüências de tal interpretação. Assim, uma oferenda qualquer, depositada em logradouros do tipo pedra do rio, beira do mar, mata, pedreira, encruzilhada, tudo isso provoca arrepios de assombro e terror. Na verdade, não são os objetos que provocam tal fenômeno, mas é o preconceito que propicia uma interpretação promotora de tal estado psicológico.O arraigamento de tal aversão vai tão longe que é comum até mesmo pessoas, declaradamente atéias, manifestarem pavor diante de situações próprias e particulares da cultura negra. Exemplos disso: pemba preta (agenciadora da morte e de toda espécie de malefício); ebó depositado numa encruzilhada (sinal do pacto com as forças demoníacas); cânticos religiosos ou até mesmo folclóricos (invocação ao Diabo); adereços ritualísticos (sinal de pacto com Satanás). E por aí segue uma série de absurdos, típicos dos que têm o horizonte colado ao nariz. Mas esta também foi a arma ideológica para manter os negros presos com outras correntes, mais terríveis ainda: “Você não é gente: é cria do Demônio, é pior que bicho. Por isso você é meu escravo e eu posso fazer de você o que eu bem quiser. Sua única salvação possível é abdicar de suas crenças e crer no que eu creio.”

Vale ressaltar também que a prática cultural das crenças dominantes passou por uma assepsia. Assim, não se vê o cadáver do Filho Único sacrificado, mas o pão em que o corpo dele se transformou. Não se bebe o sangue vertido do corpo matado, mas o vinho em que o sangue se transformou. E esta assepsia no conjunto simbólico permite que cena seja compreendida como civilizada, agradável, sutil e verdadeira. Na cultura do terreiro, porém, o simbolismo é outro. Os objetos passam por uma outra concepção que não é compreendida nem alcançada pelos praticantes de outros costumes. Isso possibilita, então, uma inviesada interpretação das práticas dos terreiros, por parte dos preconceituosos, que tomam tudo como feitiço, isto é, o malefício do feiticeiro.A prática do mal é inerente à natureza humana em qualquer cultura. E a maioria dos males é praticada fora do terreno religioso. Exemplo disso é o engendramento de práticas políticas, econômicas e educacionais que possibilitam a infância desamparada, a velhice abandonada, a falta de assistência à saúde, a educação ultrapassada, a corrupção, a negação dos direitos dos trabalhadores, a perseguição às minorias, a devastação das florestas, a poluição de mares e rios, a exterminação das espécies. Mas aí, o ebó é outro. E por isso mesmo, muita gente boa não se arrepia, não tem temor, nem fica apavorada porque não pode ver o verdadeiro demônio que, por trás de tudo isso, faz um feitiço escabroso.
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Prof. Ruy do Carmo Póvoras

ITAN: A JACA MOLE


Oxalá amanheceu com vontade de viajar. Olhe que isso é uma raridade acontecer. É tão raro, que os outros orixá atenderam, de imediato, ao chamado dele para participarem. Saíram de madrugadinha. Oxalá é assim: só começa as coisas antes do raiar do dia. E lá se foram, em fila indiana. Todo mundo andando sem pressa, pois Oxalá é lento, vagaroso e só anda em último lugar.

Iansã, acostumada com a agonia de sua tempestade, foi ficando impaciente. Olhava para um canto, olhava para outro, mirava o horizonte sem fim bem lá longe. E foi ficando cada vez mais agoniada. Começou a pensar consigo mesma:

−Ah, se eu estivesse sozinha... Logo, logo eu estava lá.

Se pelo menos Xangô, seu parceiro de agonia, resolvesse lhe acompanhar... Mas que nada: Xangô hoje estava decidido fazer companhia ao mais-velho...

A agonia aumentou tanto, que ela não suportou mais andar no passo do cágado. Aí, ela rodopiou e seguiu em frente sozinha. Lá, bem adiante, parou. Ficou embaixo de uma jaqueira, enquanto observava o grupo que se arrastava lentamente, por causa de Oxalá. A essas alturas, ela já estava pensando no que ia fazer depois que voltasse da viagem. Assim, ela navegou nos pensamentos, fazendo mil projetos. E a ventania corria pelo mato, derrubando folhas verdes e maduras.

Quando ela estava assim, bem de seu, uma jaca-mole, bem madura, despencou bem em cima de sua cabeça. Ela ficou banhada de visgo e melaço de jaca, da cabeça aos pés. Tomou um susto enorme, deu um grito e ficou sem saber o que fazer. Aí, ela se sentiu profundamente desamparada e resolveu voltar ao encontro do grupo.

Todo mundo notou a melação, mas ninguém disse nada. E ai de quem perguntasse qualquer coisa... De cabeça baixa, ela passou por Oxalá e tomou o último lugar na fila, atrás dele. Iansã apenas ouviu a última frase de uma conversa, que já estava terminando, entre Oxalá e Omolu, os mais velhos entre os mais-velhos:

− Pois é... Como o senhor bem sabe, esse povo assim, agoniado, precisa aprender:
Quem só anda às carreiras vai ter que voltar muitas vezes, para vencer a agonia.

Fonte : Prof. PÓVOAS, Ruy do Carmo